Quem sou eu? Que lugar ocupo no mundo? Estas foram as questões que serviram de inspiração para a peça “As Sereias Vivem no Espaço”, produto que resulta das vivências de 12 jovens que pertencem ao grupo terapêutico da unidade W+, da Misericórdia de Lisboa. No dia 22 de maio, o público que foi ao Festival Mental, no Cinema S. Jorge, viu dez jovens a usarem o teatro para dar voz e forma aos problemas da adolescência, a dizerem basta e a derrubarem as barreiras impostas pela sociedade. As personagens da peça definem-se pela forma como, ao longo do enredo, se soltam das caixas estereotipadas e carregadas de pressão em que vivem.
O Mental coloca a saúde mental em primeiro plano. Neste festival, fala-se claro e claramente sobre problemas. A plataforma escolhida é a cultura no seu sentido mais lato e as artes em particular, veículos extraordinários para o combate ao estigma, vergonha e falta de informação pública e geral.
E foi precisamente para informar e sensibilizar o público para as questões da adolescência que a W+ voltou a participar no Festival Mental. Sónia Santos, encenadora da peça e psicóloga da unidade W+, explica que tudo surge no seio do grupo terapêutico, através da partilha de sentimentos, de um debate sobre diferença, desigualdade de direitos e pressão social. “Com esta situação de pandemia, os adolescentes foram muito afetados com as questões da sua socialização, do seu novo lugar no mundo. ‘As Sereias Vivem no Espaço’ tem que ver com a desconstrução daquilo que é a identidade na adolescência, com a procura de novos lugares seguros e, sobretudo, com aquilo em que eles acreditam”, conta a encenadora.
Quando a cortina abre, um grupo de jovens surge inerte. “São dez sereias” que ainda não descobriram que o são. Rapidamente o palco do Cinema S. Jorge dá lugar a um recreio, onde correrias desenfreadas, saltos de alegria, brincadeiras de bate-mão e o jogo da macaca transportam o público para uma infância livre e feliz.
E, num ápice, a peça oscila, como o humor e a personalidade na adolescência, entre o quem sou eu e o quem os outros querem que eu seja. Aquilo que era um palco de alegria cheio de crianças felizes dá lugar a um clima de inércia, a um grupo resignado ao lugar que a sociedade construiu para eles. Dentro de uma caixa de estereótipos e preocupações, narram como é viver num espaço que foram forçados a ocupar. Esta caixa não lhes permite serem livres. Vivem à procura do corpo perfeito imposto pelas redes sociais, sofrem com o racismo embrulhado, com a homofobia ou com a pressão de chegar ao sucesso. No fundo, têm dificuldade em serem livres e autênticos.
“Sabias que as sereias moram no espaço? No espaço, as sereias são livres para serem quem quiserem”. Faby é a sereia que assume o papel de tirar todos, atores e público, da zona de conforto. “O meu papel é fazer com que as pessoas enxerguem que não têm que ser colocadas em nenhum lugar só porque a estereotipam. Esta sereia tem aqui uma missão super importante: tirar toda a gente da zona de conforto. É necessário ter consciência e consciencializar os outros à nossa volta. Todos estes temas têm de ser mais falados e mais aprofundados. No caso da adolescência faz com que estejamos mais preparados para enfrentar uma série de coisas no futuro”, explica.
“Na W+ posso ser eu, sem capa”
Faby, Arlete e João são alguns dos jovens que fazem parte do grupo terapêutico da W+. Arlete está nesta unidade da Misericórdia de Lisboa há cerca de cinco anos. Foi aqui que começou a “perceber que está tudo bem em estar mal”. Conheceu uma Arlete que não conhecia. Foi esta casa que lhe permitiu ser ela, “sem capas”. “A Arlete antes da W era uma jovem construída pela opinião dos outros, que se tentava encaixar naquilo que as pessoas achavam que ela era”, revela.
Para esta jovem de 23 anos, o espetáculo que apresentaram no Cinema S. Jorge é, no fundo, o espelho daquilo que é a W+: “um lugar seguro”.
João Aldeias, 18 anos, estudante de teatro, vai mais longe. Para o ator, este grupo que subiu ao palco do Festival Mental acaba por ser a voz de muitos adolescentes que vivem aprisionados nas opiniões dos outros.
“Aquilo que retratamos na peça são temas que me tocam a mim, aos meus colegas e à sociedade em geral. Estas peças fazem-nos mudar, fazem-nos sair da nossa zona de conforto. Ainda existem muitas barreiras para derrubar e o teatro pode ser um veículo para ajudar a destruir essas barreiras”, refere.
Os dez jovens que participaram no Festival Mental foram chegando de diferentes pontos: equipas de autonomia, casas de acolhimentos ou, como é o caso de João Aldeias, graças ao protocolo estabelecido com o Liceu Passos Manuel. Mas o objetivo da W+ não é fazer peças de teatro. O teatro resulta do trabalho desenvolvido pelo grupo terapêutico e do uso de técnicas psicodramáticas. A equipa da W+ que trabalha com estes jovens, com idades compreendidas entre 15 e 24 anos, desenhou uma resposta que foge ao caminho tradicional, onde o teatro é usado como mediador terapêutico para construir e desconstruir uma série de defesas psicológicas.