Américo Lopes, de 89 anos, viu acontecer o 25 de abril. Naquela quinta-feira histórica, Américo saiu de casa, ainda nos primeiros raiares de sol do dia, para mais uma jornada de trabalho dedicada às Boas Causas, na farmácia Santa Marta. Saiu para trabalhar num dia de ditadura e regressou a casa com a Revolução nas ruas.
“A memória já não é a melhor, mas existem dias que não se esquecem e o 25 de abril de 74 ficará para sempre gravado na minha memória”, começa por dizer Américo Lopes, enquanto relembra os mais distraídos que “são 89, quase 90 anos de história, mais do que o país tem de livre democracia”.
Recuemos uns anos, mais precisamente ao ano de 1956, altura em que Américo começa a trabalhar na Santa Casa. Uma Casa que o recebeu “de braços abertos” desde o primeiro dia.
Católico, de uma fé inabalável, Américo sempre soube que o seu destino passaria por “ajudar o próximo”. Por isso, quando surgiu o momento de se juntar às Boas Causas, a decisão “foi fácil de tomar”. Começou numa antiga Cozinha Económica, na freguesia de Campo de Ourique, e ao longo dos tempos foi aperfeiçoando outro ofício na Casa, o de técnico nas farmácias da Santa Casa.
Embora recorde que foi a trabalhar no Departamento de Farmácia que se sentiu mais confortável na instituição, admite que “não existe amor como o primeiro” e que a passagem pela “Sopa dos Pobres” de Campo de Ourique lhe alterou a vida para sempre, no sentido positivo.
“Foi no equipamento de Campo de Ourique que conheci a minha futura esposa, vi muita pobreza, mas conheci pessoas excecionais e de um caráter ímpar”, recorda saudosamente, frisando, ainda, “que às vezes somos mais felizes com pouco, do que com muito”.
O tempo, esse, não parou, nem para Américo nem para ninguém. Durante os anos seguintes, Américo casou, teve três filhos e viu a sua dedicação às Boas Causas ser reconhecida, com a promoção para o Departamento de Farmácia da instituição.
Entrando no ano da Revolução dos Cravos, Américo recorda-se que já existia alguma coisa “suspeita no ar”. Verdade é que na madrugada de 16 de março de 1974, uma coluna de cerca de duas centenas de soldados comandada pelo major Armando Ramos saiu do Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, e tomou a estrada a caminho de Lisboa. O seu objetivo era derrubar o governo de Marcello Caetano, para o qual esperava o apoio de outras forças militares, nomeadamente de Lamego, Mafra e Vendas Novas, algo que não viria a suceder, frustrando o caminho de um golpe de Estado.
“Em março desse ano, e só se percebeu depois, existiu uma espécie de começo de Revolução. Percebíamos que algo estava para acontecer, que era iminente, mas ainda não sabíamos nem quando, nem onde.”
E estava para acontecer, de facto. No dia 25 de abril de 1974, Américo saiu de casa, na zona de Benfica, e apanhou o comboio para o trabalho. Já com a Revolução em curso, o agora vice-presidente da ARMIL, a Associação de Reformados da Misericórdia de Lisboa, relembra “que as pessoas já estavam a dizer que os militares estavam na rua para fazer cair a ditadura.”
Já munido de algumas informações que tinha ouvido entre os utilizadores do comboio e o que ia passando na rádio, Américo seguiu para os Serviços Centrais da Misericórdia de Lisboa, no Largo Trindade Coelho. Saindo da estação de comboios do Rossio repetiu o que fazia todos os dias: subir as Escadinhas do Duque e olhar de relance para o Largo do Carmo, que ainda se encontrava vazio.
“O dia começou como outro qualquer. Fui para o trabalho e só no decorrer da manhã é que as informações iam chegando. Só aí é que percebemos que tinha havido alguma coisa. Ao meio-dia, os serviços da Santa Casa avisaram o pessoal que iam encerrar e fomos embora, cada um para a sua casa.”
Américo conta que sentiu receio do que aí vinha, mas, ainda assim, percebeu que se estava a fazer história e que, de uma maneira ou outra, também ele iria ter a oportunidade de vivê-la.
Ainda assim, já após os filhos saírem do Colégio “Salesianos de Lisboa”, em Campo de Ourique, e de ir busca-los à casa de uma tia naquela zona e colocá-los “a salvo em casa”, Américo ainda voltou ao Largo do Carmo para assistir “na primeira fila” ao cerco do Quartel do Carmo. Lá dentro, onde agora é o Museu da Guarda Nacional Republicana, Marcello Caetano refugiava-se dos militares do Movimento das Forças Armadas. Salgueiro Maia e os seus camaradas de armas entrariam, depois, pelo quartel adentro, exigindo a rendição do até aí presidente do Conselho de Ministros, que pedia que o poder não caísse nas ruas.
Uma multidão acompanhava tudo cá fora. Américo estava nas redondezas. “Ainda vi o Presidente Marcello Caetano entrar numa chaimite e ir para o aeroporto levado por um rapaz amigo meu, que era militar na altura”, lembra-se, apontando para uma janela de um edifício na Rua da Condessa: “Chegámos a estar naquele prédio, no número 9, várias vezes, para discutir entre todos o que poderia ser melhorado na Misericórdia”.
Passadas cinco décadas desde o momento que Américo descreve como sendo “o dia mais importante para Portugal”, afirma que já muito se fez na Santa Casa, mas que ainda existem medidas pensadas na altura “que estão por conseguir”.
“Criámos na altura na Santa Casa uma Comissão de Trabalhadores, lutámos por direitos que, anteriormente, alguns colaboradores não tinham, conseguimos estabelecer pagamentos de serviços, que anteriormente não eram pagos, melhorámos o serviço de refeitório com mais qualidade e baixando custo para o trabalhador e ainda reestruturámos algumas carreiras. Mas gostávamos de ter feito mais.”
Sentado num dos bancos voltados para o antigo Quartel da GNR, e do alto dos seus já quase 90 anos de história, Américo Lopes não tem dúvidas quando a questão é liberdade. “A Revolução trouxe a liberdade para um povo que estava oprimido e para mim a questão é simples: 25 de Abril sempre! Hoje, e sempre!”