Nas suas várias áreas de intervenção, distribuídas por lares, escolas, hospitais, conventos, creches e centros de dia da capital, o seu público, apesar das diferenças, é composto pelos mais vulneráveis, como há 500 anos: pobres, desempregados, doentes, idosos que vivem sós, crianças abandonadas e em perigo, pessoas sem teto, com deficiência, refugiados ou mulheres exploradas sexualmente.
Os baixos rendimentos, desemprego, carência alimentar e doença crónica estão entre os principais motivos dos pedidos de apoio.
Na maioria das vezes, a porta de entrada na Misericórdia de Lisboa é aberta pela Ação Social, um dos mais antigos e principais domínios da instituição. A sua atividade é tema do primeiro texto desta rubrica.
Esta é uma história de violência doméstica e de superação. A história de Otília da Cruz, de 76 anos, vítima de maus tratos físicos e psicológicos depois de uma infância e juventude marcadas pelo abandono e pela pobreza. Uma história como tantas outras que todos os dias chegam ao conhecimento da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML).
Otília da Cruz, utente do Centro de Dia do bairro da Boavista
Otília da Cruz é um nome registado na longa lista de pessoas em situação vulnerável na cidade de Lisboa que a Santa Casa conseguiu ajudar a levantar.
Hoje, convive no Centro de Dia do bairro da Boavista, em Benfica, faz parte de um coro, desfila todos os anos na marcha da Santa Casa e passeia pela Baixa lisboeta. “Agora, aos 76 anos é que tenho a vida que sempre quis”, diz.
Comove-se ao falar do passado. Depois de uma infância roubada, em que serviu em casa de um casal abastado, longe dos pais e dos irmãos, conheceu o homem com quem viria a casar. Na rua das Dálias, em Benfica, o bairro onde então vivia. Mas o romance cedo se transformou em sofrimento. Dez anos mais velho, o marido começou a maltratá-la. “Começou a cismar, era muito possessivo, não queria que fosse trabalhar”, conta.
Já reformado, saía muitas vezes à noite, bebia, voltava de manhã. Submissa, Otília da Cruz “não podia dizer nada, não me podia meter nas conversas. Se ele tivesse vindo aborrecido da rua, eu é que pagava.”
Batia-lhe. Ela tinha de estar “sempre presente, sempre a olhar fixamente para ele, se desviava o olhar, dava-me estalos. Dizia que me havia de matar. Vivia sempre naquele medo.” Mas, por mais que tivesse pensado em sair, nunca arranjou coragem. “Já vem de trás. Presenciei sempre a minha mãe a levar e a deixar passar. Vivi assim 40 anos.”
Os olhos brilham por entre as rugas da cara cansada.
Um dia, o marido deu-lhe uma tareia. “Disse que eu era uma erva daninha porque nunca lhe tinha dado filhos. Chamaram a polícia, os agentes abriram a porta e tiraram-me de lá. E depois nunca mais voltei. Mesmo assim, tinha pena dele, acredita? Ficou doente e quando morreu, fui ao funeral e ainda vou de vez em quando à sua campa pôr uma florinha.”
Alguém, não sabe bem quem, pediu ajuda à Santa Casa e chamaram-na.
Cláudia Balasteiro, assistente social e diretora do Centro de Dia da Boavista
Cláudia Balasteiro, assistente social há 19 anos e diretora do Centro de Dia da Boavista, da Misericórdia de Lisboa, sorri discretamente com satisfação pelo bom resultado do trabalho da sua equipa.
Há dois anos e meio que chegou ao Bairro da Boavista, um bairro onde as técnicas da Santa Casa evitam fazer atendimento social por falta de segurança. Um bairro do centro da capital com muitos residentes idosos que nunca de lá saíram e que de Lisboa, não conhecem mais nada. Grande parte nem telefone tem e quando é preciso contactá-los, não há outra hipótese senão ir bater-lhes à porta. Muitos não sabem ler nem escrever, recusam-se a tomar banho e a usar cintos de segurança. Os casos de doença psiquiátrica abundam. Entre os 40 frequentadores deste centro de dia, contam-se toxicodependentes, um alfarrabista, um fuzileiro, uma modista e também um antigo carteirista sem reforma.
Idosos, pobres e sós
As assistentes sociais informam-nos dos seus direitos e tratam-lhes das consultas e das reformas cujo valor é, por vezes, abaixo do que lhes é devido, sensibilizam as famílias, quando as há, para os seus problemas.
No centro de dia da Boavista, comem, tomam banho e mudam de roupa, participam em atividades, convivem, veem televisão ou simplesmente não fazem nada.
As várias realidades que coexistem neste centro são objeto do trabalho desenvolvido todos os dias pelas auxiliares, assistentes e educadoras sociais, à semelhança do que se observa nos 44 estabelecimentos para idosos, lares e centros de dia, da Santa Casa.
Em 2023, a instituição acolheu nos seus centros de dia em Lisboa 1347 pessoas, número que aumentou para 1371 nos primeiros 9 meses de 2024*. Já nas Estruturas Residenciais para Idosos em regime permanente, vulgo lares, o número de idosos contabilizava, em 2023, 443 utentes e, nos primeiros 9 meses de 2024, 426.
Este apoio estende-se às ERPI privadas, através do programa PILAR, único no país, em que a SCML contribui financeiramente para o pagamento de uma parte das mensalidades de alguns dos seus utentes ali acolhidos. Em 2023, o número de processos foi de 1215 e, em 2024, de 1109.
Outra ajuda muito significativa à população mais velha é o apoio domiciliário que, em 2023, beneficiou 2501 pessoas e em 2024, 2215.
Mas há muitos outros idosos de Lisboa que recebem apoio da SCML noutros contextos, como no Atendimento de Emergência ou no apoio a doentes crónicos e a pessoas em situação de carência alimentar.
Em termos gerais, as equipas de apoio a idosos acompanharam 3113 pessoas em 2023, número que, em 2024, foi de 2961. Estas equipas, interdisciplinares, estão enquadradas na Ação Social de Proximidade e têm o objetivo de responder de forma célere às situações de risco/perigo a que estão sujeitos os cidadãos com mais de 65 anos.
No conjunto das respostas da SCML para os mais velhos, foram admitidos em 2023, 1249 novos utentes e, em 2024, 979. Em ambos os anos, predominam as mulheres com mais de 65 anos.
O principal motivo que levou no ano passado à admissão das pessoas mais velhas foi a “dependência”, problema relativo a 520 idosos, número que totaliza em 2024, 344. Em segundo lugar, surgem os “problemas de Saúde”, referente a 428 utentes, e que em 2024 foi de 280. O terceiro motivo é referido como “iniciativa de familiares do utente”, totalizando o número de 315 idosos em 2023 e 201 em 2024.
O isolamento e a alta hospitalar são alguns dos outros problemas que levam à admissão.
Cláudia Balasteiro nota que se todo este trabalho é gratificante em vários aspetos, não deixa de causar forte frustração em muitos outros.
Muitas vezes, a confiança e a empatia com que a sua equipa trabalha está longe de ser suficiente.
A complexidade dos processos administrativos e a escassez de recursos de algumas instituições com as quais é essencial colaborar, como a área da saúde, dificultam, em diversas situações, o trabalho da ação social. Recentemente, apesar dos alertas constantes de uma técnica sobre o risco de suicídio de uma pessoa junto ao médico do centro de saúde onde era acompanhada, o apoio necessário não foi prestado a tempo e essa pessoa veio a falecer.
Com este caso, tenta sensibilizar um grupo de jovens estudantes de medicina que visita o centro para a importância e responsabilidade do papel do médico quanto à urgência das respostas.
Ao abrigo de um protocolo com a Faculdade de Medicina de Lisboa, e no âmbito da cadeira de Introdução à Medicina, os jovens do 1.º ano contactam com várias realidades sociais no terreno, neste caso com a do centro de dia da Boavista.
Alexandra, Margarida, Sara, Rafael e Diogo, entre os 18 e os 19 anos, ouvem atentamente Cláudia Balasteiro sobre a indiferença de alguns médicos e as dificuldades de articulação entre a ação social e a saúde. Sobre a importância da escuta, do atendimento personalizado e com privacidade e de como é imprescindível comunicar com as famílias.
Trabalho invisível
Apesar dos desafios encontrados muitas vezes, existe um esforço notável por parte das profissionais no terreno para dar as respostas necessárias aos casos que lhes chegam.
Cláudia refere todo o trabalho invisível feito de gestos simples, diálogos, atividades e iniciativas que ajudam a superar barreiras e abrir novos caminhos.
Isso confirma Otília da Cruz, cuja história de violência doméstica será semelhante ao de muitas mulheres da sua idade e do seu estrato social. Primeiro, “recebi muito carinho, muito apoio psicológico”. Depois, as assistentes sociais ajudaram-na a tratar das questões práticas, conseguiram arranjar-lhe uma reforma melhor e uma casa no mesmo bairro. “Só agora é que estou a viver a minha vida”, diz.
Também Vítor Manuel Fernandes, de 79 anos, antigo tipógrafo residente no bairro, se sente reconhecido pelo apoio prestado pela equipa do centro de dia da Boavista. Há três anos enviuvou e caiu em depressão. A princípio, recusou a proposta para frequentar o centro. “Estava ainda naquele sentimento de luto pela morte da mulher”, conta, acrescentando: “mas chamaram-me aqui em boa hora, senão já não estava ao cimo da terra”.
Já não há manhã que lá não esteja. “São todos vizinhos, toda a gente se conhece, tenho cunhados aqui, muita gente me acarinha.” E com eles almoça, convive e joga às cartas. “Qualquer coisa que precise, ajudam-me. A minha vida voltou a ganhar sentido”.
Vítor Manuel Fernandes, utente do Centro de Dia da Boavista
Em várias frentes
Os técnicos de ação social da Santa Casa trabalham na linha da frente para responder aos vários tipos de necessidades da população socialmente mais vulnerável da cidade de Lisboa. Uma população urbana diversificada e em constante mudança.
Assumem assim a missão a que há 500 anos a Misericórdia de Lisboa (SCML) se dedica: Combater a pobreza, promover a inclusão social e apoiar os mais vulneráveis.
A Ação Social é assim, desde há séculos, uma das principais áreas da atuação da Santa Casa.
Neste primeiro artigo desta rubrica demos a conhecer apenas uma pequena parte do trabalho que é desenvolvido por esta área – e que tanta diferença faz na vida dos utentes que dele usufruem – mas há muito mais para dar a conhecer. E é isso que faremos no próximo artigo.
*os dados de 2024 apresentados no texto são sempre referentes aos primeiros 9 meses do ano.