Inserido na freguesia de Campolide, o Bairro da Liberdade é um território que vive sobre si próprio. Paredes meias com o Bairro da Serafina, este sim, mais conhecido dos lisboetas, a Liberdade, como é apelidado entre os moradores do bairro, é um conjunto de casas, muitas delas a fazer lembrar os bairros mais carenciados de Lisboa, no final do século passado, onde velhos e novos vivem diariamente “apinhados” em aglomerados de betão, madeiras, passadiços estreitos e becos.
Todo este cenário contrasta com a vista que o bairro tem. Do outro lado da colina, um verdadeiro postal da cidade se abre ao olhar, tendo as Torres das Amoreiras como pano de fundo. Como vizinho, um dos mais emblemáticos monumentos da cidade, o Aqueduto das Águas Livres. Do outro lado, o Parque Natural do Monsanto.
Neste emaranhado de contrastes vivem mais de sete mil pessoas, divididas pelos dois bairros, na sua maioria imigrantes, grande parte deles indocumentados, além de muitas famílias carenciadas.
Foi por isso que a Misericórdia de Lisboa inaugurou há 10 anos, neste bairro, a Unidade de Saúde Santa Casa da Liberdade (USSC Liberdade). O espaço contíguo ao Centro Social Paroquial de São Vicente Paulo, engloba várias valências, no qual os moradores de ambos os bairros, podem receber cuidados de saúde a título gratuito, mediante comprovativo de residência.
André Brandão de Almeida, administrador da Santa Casa e que fez parte da primeira equipa de sáude da unidade como médico dentista, recorda que esta Unidade de Saúde “tem particularidades que a diferencia das restantes, uma vez que toda a população tem acesso a cuidados, sem necessidade de ter o Cartão de Saúde Santa Casa. É por isso, desde o seu início, uma unidade de acesso universal, tendo em conta a população do bairro”.
Uma das grandes diferenças entre a USSC Liberdade e as restantes unidades que a Misericórdia de Lisboa detém na cidade, prende-se com a valência da Medicina Dentária. Entre as várias Unidades de Saúde Santa Casa (Oriental Dr. José Domingos Barreiro, Ocidental, Telheiras – Extensão Bairro Padre Cruz), esta é a única que tem o serviço de estomatologia totalmente gratuito.
Inclusive, a aposta nesta especialidade foi também “um projeto piloto para outras respostas”, como refere o antigo médico dentista da unidade, frisando que “foi da experiência adquirida neste bairro que surgiram projetos, como o SOL – Saúde Oral em Lisboa”, serviço destinado a todas as crianças e jovens, dos 0 aos 18 anos, residentes ou estudantes em Lisboa, onde todos os cuidados prestados são isentos de pagamento, independentemente da condição social ou económica dos utentes.
Para além do serviço de estomatologia, a USSC Liberdade disponibiliza cuidados em Planeamento Familiar, Saúde Materna, infantil e juvenil, do adolescente, do adulto e do idoso, bem como serviços de fisioterapia assegurados pelo Centro Paroquial de São Vicente de Paulo.
André Brandão de Almeida, atualmente administrador da Santa Casa, foi um dos profissionais de saúde que inauguraram a unidade, em 2014.
10 anos de Liberdade, um balanço positivo
Em 10 anos muito mudou. A equipa alterou-se, as metodologias também. Houve uma pandemia pelo meio que parou o mundo, mas no bairro, o tempo parece que parou. Os problemas são os mesmos e as especificidades dos utentes também.
Ao longo desta década, milhares de pessoas, de várias nacionalidades, encontraram nesta unidade de saúde uma resposta. Só no último ano, foram realizadas 3.396 consultas de Medicina Geral e Familiar e quase 6.000 atos de enfermagem. Já na área da Medicina Dentária foram realizadas 1.272 consultas de Saúde Oral e 693 de Higiene Oral.
António Simões, médico da unidade desde a sua inauguração comenta que na Liberdade “ninguém fica para trás”, lembrando que a ideia de ter este espaço no bairro, foi fundamental para que “muitas destas pessoas conseguisse ter algum tipo de acompanhamento médico”.
“Este é um território esquecido pelos decisores. Em boa hora, a Santa Casa apostou em colocar aqui esta unidade. Para muitas das pessoas que aqui moram, se não houvesse aqui esta resposta, muito dificilmente tinham cuidados de saúde primários”, destaca o médico de Medicina Geral e Familiar.
Na opinião de António Simões, o balanço “é positivo” e explica que “este bairro pode ser comparado como algumas aldeias de Portugal, onde todos se conhecem. Notamos que os moradores têm confiança em todos os profissionais que aqui trabalham e sentimos um carinho muito grande por parte da comunidade”.
Já Eunice Vidasinha, enfermeira-chefe da unidade não tem dúvida que “a proximidade e a acessibilidade é a melhor forma para cuidar de alguém”.
Duas vezes por semana, terças e quintas-feiras, a unidade de saúde acolhe também um serviço de apoio social, feito por assistentes sociais da Misericórdia de Lisboa. Para a enfermeira-chefe “esta é uma valência que auxilia e muito o trabalho diário, porque dá um retrato de situações de saúde causadas por uma emergência social”.
Como exemplo Eunice Vidasinha recorda o caso de uma senhora russa que procurou na unidade abrigo, devido a um quadro de violência doméstica. “Foi um caso complicado, porque a senhora estava com receio de dizer ser russa devido ao conflito na Ucrânia, e só dizia que, fora o episódio de violência doméstica, era constantemente mordida pelos ratos. Entretanto foi encaminhada para o Hospital de Santa Maria e mais tarde fui contactada e informaram-me que a senhora estava com uma quebra no número de plaquetas devido às condições insalubres da habitação”, lembra.
No entanto, Eunice Vidasinha tem a convicção que “o trabalho desenvolvido pela unidade tem um grande impacto na qualidade de vida da população”, ainda assim, garante sorridente que “temos espaço para fazer mais e melhor”.
Atual equipa da USSC da Liberdade