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Fundo Rainha D. Leonor: “Uma utopia com resultados”
Há dez anos, nascia o Fundo Rainha D. Leonor (FRDL), resultado de uma ideia do então provedor da Misericórdia de Lisboa, com o objetivo de recuperar o património histórico e social pertencente às Misericórdias. Resultados à data de hoje: 143 obras reabilitadas. Aspiração: chegar às 387 Misericórdias do país.
“Uma decisão histórica e revolucionária”. É assim que Inez Dentinho, do Conselho de Gestão do Fundo Rainha D. Leonor, classifica a conceção desta iniciativa.
Foi em 2013 que o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) da altura, Pedro Santana Lopes, deu o sinal de alerta quando, ao passar por Almeirim, deu conta de um edifício degradado num quarteirão em ruínas, onde era possível ler na fronte ‘Hospital’ e ‘Santa Casa da Misericórdia de Almeirim’. Aquela ruína mostrava a marca ‘Misericórdia’ “como um sinal de falência”, pode ler-se no livro Fundo Rainha D. Leonor – Obras nas Misericórdias”, apresentado no passado dia 23 de fevereiro, na igreja de São Roque, em Lisboa.
“A Santa Casa de Lisboa tinha (e tem) a possibilidade de fazer obras nos seus equipamentos, mas as outras Misericórdias do país não. Isto, porque foram criadas numa lógica feudal e territorial, sendo que cada uma só funciona dentro do seu território. E Lisboa, sem exceção, funciona dentro e para os utentes de Lisboa”, explica Inez Dentinho.
Foi então que, a 23 de abril de 2014, Santana Lopes e Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas, assinaram um acordo de parceria dividido em duas vertentes: “o Fundo Rainha D. Leonor, para apoio das obras nas Misericórdias, e o Acordo Nossa Senhora do Manto, para colocar utentes da SCML nas vagas disponíveis nos lares das Misericórdias portuguesas”.
A avaliação das candidaturas ao FDRL é uma tarefa muito rigorosa, assente num conjunto de seis parâmetros e aliada a uma fórmula de pontuação. Não há nenhum apoio concedido que não seja antecedido por uma deslocação da equipa do Fundo.
“O Fundo não se limita ou limitou a recuperar edifícios. Depois de, em 1976, as Misericórdias terem ficado sem a sua rede de hospitais, equipas médicas, enfermagem e auxiliares, por causa da nacionalização levada a cabo pelo Estado, elas não ficaram paradas por falta de missão. O que aconteceu? Constataram que, em Portugal, as mulheres representavam 43% da população ativa, pelo que tal afetaria muito a possibilidade de tomarem conta dos filhos e dos mais velhos. Então, lançaram uma rede de creches, jardins de infância e lares, equipamentos que estavam bastante obsoletos”, explica Inez Dentinho.
“E o que é fizemos nós?”, continua a responsável: “recuperámos casas de banho, fizemos obras de eficiência energética, obras de capoto, novas coberturas, etc. Em troca, pedimos sempre um plus de inovação social, que consiste em adaptar os lares ao século XXI e tornar as pessoas mais livres, combater a coletivização da vida nos lares, arranjar salas diferentes para os utentes terem “pontos de fuga” e, sobretudo, circuitos nos jardins, para poderem andar no exterior, de cadeira de rodas ou a pé, conforme conseguirem”.
Praticar Inovação Social
Nesta intenção de adequar os lares às melhores práticas de inovação e de adaptação às necessidades dos utentes, houve equipamentos que desafiaram a originalidade. O livro agora apresentado, sobre as obras do FDRL, conta-nos algumas dessas histórias.
Em Oleiros, na Beira Interior, o espaço de saída do lar, pertença da Misericórdia, fica junto à saída de uma escola secundária, onde os alunos esperam pelos pais que os vão buscar. Pois, ali mesmo, o provedor não poupou esforços e criou um terreiro de jogos com xadrez, bowling, máquinas de exercícios e uma zona de churrascos abrigada, para que todos os que queiram possam organizar as suas festas. Quando chove ou quando é preciso, transforma-se uma sala de estar do lar ou num espaço de apoio aos TPC, graças a um dos residentes do lar, antigo professor de Matemática e Português.
Já em Baião, vila localizada na sub-região do Tâmega e Sousa, aproveitou-se a obra de reabilitação de um dos edifícios do lar para instalar wi-fi em todos os quartos e nas várias salinhas inseridas na grande sala comum. Tal foi possível tendo em conta o projeto de arquitetura original, que consistia em criar-se em cada quarto um pequeno espaço que permite ficar sozinho ou receber visitas. Também o grande jardim foi dotado de circuitos seguros, miradouros e máquinas de exercício.
No Montijo, na margem sul do Tejo, a Misericórdia atendia adolescentes grávidas e que não eram defendidas pelas famílias. Ou pela própria vida. Naquelas consultas, começaram a procurar-se alternativas para que as futuras mães pudessem continuar a estudar ou encontrar emprego, entre outros apoios materiais e imateriais. O número de bebés nascidos com estas ajudas, agora às centenas, obrigou a Misericórdia a criar uma “casa de apoio à vida” perto da polícia e dos bombeiros, tendo em conta os casos de violência doméstica e no namoro e as urgências hospitalares. O FDRL apoiou a construção deste centro que, hoje, salva vidas de crianças e adultos.
Neste vasto conjunto de intervenções, Inez Dentinho relembra duas histórias que a tocaram particularmente. “Na área social há obras extraordinárias. Uma das que mais me surpreendeu foi a de Santo Tirso. Íamos só fazer um capoto, pôr janelas novas contra o frio e contra o calor e um telhado novo. Mas, numa conversa com o provedor daquela Misericórdia, chamei a atenção para a necessidade de as pessoas terem de sair para o exterior e aproveitar o jardim enorme que lá existia. Ele dizia-me que elas não iam, mas eu insisti que era preciso tentar. Elas não vão para um matagal, mas vão para um jardim. O que aconteceu? Quando lá fomos na primeira vistoria, o provedor foi muito mais além – até porque os provedores são muito mais ambiciosos do que nós – e fez um circuito pelo jardim, com bancos espaçados e pérgulas. O local é agora frequentado pelas netas dos utentes que levam os bebés a visitarem os seus familiares, aproveitando aquele espaço ao ar livre. Ali perto, havia também uma igreja para a qual eu pedi para fazerem uma rampa de acesso, que é agora aproveitada por um grupo que, todas as manhãs, vai por ali fora, reza o seu terço e, quando volta, já fez o seu exercício espiritual e físico”.
Descobertas únicas no Património
Inez Dentinho não só não esconde, como faz questão de mostrar o orgulho que sente pelo que tem sido feito nestes quase dez anos. “Estou encantada com as obras que fazemos, porque são todas verdadeiramente transformadoras para a vida das pessoas. A área do Património tem implicado descobertas e surpresas constantes. Desvendam-se quadros que estavam pretos pela sujidade e estragados pelos tempos… uma das mais revolucionárias obras é a da igreja de Coruche, que passou verdadeiramente da noite para o dia”.
O livro do FDRL explica em detalhe esta transformação: “Esta obra terá sido uma das mais regeneradoras entre as 28 já apoiadas. A cobertura foi integralmente refeita e a estrutura do imóvel consolidada. Foi uma obra integral, que corrigiu fissuras dos terramotos de 1755 e 1909, e remendos dos anos seguintes. Mas a grande diferença entre o antes e o depois da obra vê-se, sobretudo, no efeito que a limpeza das pinturas murais teve na luz e na cor da igreja. E ainda na descoberta do retábulo anterior do Altar-Mor, por detrás de quadros, e de uma fiada de tijolos. A obra trouxe boas surpresas com a descoberta de pré-existências, pinturas murais que foram limpas, pinturas que davam centralidade à Visitação – o encontro de Maria e Isabel, que é imagem de marca das Misericórdias”. Depois desta intervenção, a igreja foi classificada pela Direção-Geral do Património Cultural como Património de Interesse Municipal.
O futuro
Por ocasião da apresentação do livro sobre as intervenções nas Misericórdias, a provedora da Santa Casa de Lisboa, Ana Jorge, sublinhou que “há um compromisso [da SCML] de manter a existência do Fundo”, acrescentando que “será necessário reforçá-lo para dar continuidade ao que aí vem e ao que está em curso”.
Em jeito de balanço, Inez Dentinho precisa que “foram 143 as obras apoiadas, 115 na área social e 28 na área da recuperação do património histórico, num valor global investido de 23 milhões de euros.” Quanto ao futuro, esta responsável refere: “Gostávamos de chegar às 387 Misericórdias em todo o país e estamos a trabalhar para isso, com a certeza de que há ainda muito por fazer”.
Como a própria escreve no prefácio da obra agora lançada, “no futuro, nada apaga o que foi alcançado. As Misericórdias estão unidas à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa numa espécie de utopia com resultados. Entendem-se. Fazem projetos para lá das candidaturas que um dia submeteram ao Fundo, que se traduzem na elaboração de inventários, no cuidado dos arquivos históricos, na troca de boas práticas sociais e de cuidado do património, no acolhimento de pessoas da SCML nas Santas Casas através do Acordo Nossa Senhora do Manto, na preparação de um museu virtual. Em suma: no que for preciso! Foi criada uma dinâmica de encontro irreversível, que transcende os resultados reais de 143 obras em comum”.
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