Aos 87 anos, Preciosa Tomás mantém a ligação à Santa Casa que começou quando tinha 28. Na altura ingressou como colaboradora, e hoje é vogal na ARMIL, a Associação de Reformados da Misericórdia de Lisboa. Fomos conhecer as suas histórias, a de Preciosa e a da ARMIL, mas acabámos por conhecer também uma outra pessoa, que haveria de juntar-se a nós no dia seguinte, e cuja história se confunde com a da própria associação. Mas já lá vamos.
Voltemos ao percurso de Preciosa na Santa Casa, o qual se iniciou há quase 60 anos. “Primeiro vim para a limpeza. Entrava às 5h30. Custava-me tanto sair da cama… mas também era só atravessar a rua!”, começa por contar.
Sete anos mais tarde, Preciosa ‘saltou’ para a cozinha do refeitório, não sem antes completar um requisito obrigatório para que tal acontecesse. “Chamaram-me para a cozinha, mas tinha de ter a 4.ª classe e eu só tinha a terceira. Então, à noite, das 19 às 20 horas, vinha uma professora dar-nos aulas. Íamos umas 10 ou 11. Depois fizemos exame na Rua da Rosa, entrei para a cozinha e estive lá 14 anos”, resume com detalhe.
Queixa-se que as marcas de servir pesados pratos ao balcão ainda se fazem sentir nos dedos da mão, mas adianta que só não ficou mais tempo na função porque quis o destino que a cozinha entrasse em obras, o que fez deslocar o local de trabalho de Preciosa para o Centro de Promoção Social da PRODAC, em Marvila.
Entretanto, deu-se um golpe de sorte: o marido de Preciosa foi chamado para trabalhar na provedoria, mas recusou e deixou uma sugestão. “Indicou-me a mim, porque eu estava triste por estar tão longe. Era uma hora e tal de autocarro! Então chamaram-me para a provedoria e já não me deixaram sair mais. Estive lá 14 anos e reformei-me em 2000”.
Anos mais tarde, Preciosa perdeu o marido e o filho casou, pelo que a solidão era a única companheira em casa. A solução chegou pela insistência de antigos colegas: juntar-se à ARMIL.
"HÁ SEMPRE QUE FAZER"
À quarta-feira é o dia de Preciosa abrir a porta e fazer o atendimento na associação. Mas a verdade é que a encontrámos… numa terça.
“Como moro aqui ao lado, nos dias em que não me apetece fazer comida, venho almoçar. Venho aí às 11 horas, almoço e depois fico aqui até às 16. Há sempre que fazer! Hoje estivemos a carimbar cartas”, diz, antes de se levantar repentinamente sem justificação. Preciosa dirige-se então à estante e tira um molho de envelopes. Volta para a mesa e desfaz, por fim, a nossa curiosidade: “Vai haver agora um passeio a Fátima e vamos informar os sócios por carta. Temos de pôr três carimbos: o do porte pago, o da ARMIL e o da Santa Casa. A secretaria só nos empresta este da Santa Casa da parte da manhã, então peço-o à quarta-feira e passo a manhã a carimbar. Entrego-o quando vou almoçar e à tarde ponho os outros. A tesoureira e o secretário têm outras coisas para fazer, da escrita e assim. Como eu de escrita não percebo nada, faço isto, e recorto os cartões dos novos sócios…”.
Preciosa conta-nos que a associação tem diversas atividades, como aulas de informática ou ginástica. A esta última não vai, porque sofreu “um acidente no joelho”. Ainda assim, garante que “os dias passam depressa”, ao contrário do que aconteceu durante a pandemia, quando, conta, esteve fechada em casa durante meses. “Ia lá o meu filho levar as compras… eu ia ficando maluca da cabeça!”.
Enumera os quatro provedores que conheceu, mas sublinha que o senhor Américo, que é vice-presidente da associação, sabe bem mais. “Tem quase 90 anos e foi um dos fundadores da associação. Ele é que sabe explicar tudo. Até me admira não ter vindo hoje. Deve ter tido alguma consulta. Mas amanhã está cá”, garante Preciosa, que nos sugere que falemos também com ele para saber mais histórias da ARMIL.
Nós assim fizemos e voltámos no dia seguinte.
O DIA EM QUE IRRITOU A PROVEDORA
Depois de uma primeira tentativa, gorada pela “sagrada” hora de almoço que se faz mais cedo do que contávamos, lá chegamos à fala com Américo Lopes. (É o dia de Preciosa abrir a porta da ARMIL e por isso encontrámo-la novamente).
“Fui presidente até 2017. Agora, sou vice-presidente”, começa por contar Américo. “Se gosto disto? Amigo, eu fui fundador desta instituição. Foi fundada a 17 de maio de 1991. Foi um grupo que se juntou a pensar que os trabalhadores, quando se reformavam, perdiam o contacto e as amizades. Fomos 10 fundadores… parece-me que só eu é que ainda estou vivo.” Preciosa, que estava mesmo ao lado, acrescenta: “De pernas e cabeça está bom, a vista é que é pior”.
Américo Lopes começou a trabalhar na Santa Casa em 1956, “numa sopa dos pobres em Campo de Ourique”, ingressando depois na farmácia Santa Marta. “Tínhamos 13 farmácias espalhadas pela cidade e passei por elas todas em férias dos colegas. Houve uma altura, num verão, em que de manhã estava em Alcântara, até às 17 horas estava em Benfica e depois ainda ia para a Musgueira. Só num dia fazia três farmácias”, relembra com orgulho.
Américo conheceu vários provedores e houve uma que, segundo o próprio, ele conseguiu irritar, numa altura em que andava à procura de novas instalações para a ARMIL.
“Primeiro, não tínhamos local para reunir e depois deram-nos um cubículo ali na Casal Ribeiro. Um dia, num encontro da Casa do Pessoal, encontrei a provedora da altura e perguntei-lhe: Doutora, quando é que temos instalações? Perguntava-lhe tantas vezes que ela nunca mais me pôde ver! Uma vez, num jantar na antiga FIL, ela andava a visitar as mesas, mas quando me viu, aí vai ela! Nem queria ver-me!”, diz Américo entre risos.
A conversa vai fluindo, mas muda para um tom mais sério quando a fita do tempo revela uma antiga ameaça à associação: “Houve uma dirigente que queria fechar isto para uns estudos, mas eu disse-lhe: nem pense! Façam os estudos que quiserem, mas isto não fecha. Só por cima do meu cadáver!”. E não fechou.
"FICAR EM CASA A OLHAR PARA AS PAREDES NÃO RESOLVE NADA"
A ARMIL tem, atualmente, cerca de 250 sócios – já foram mais de 400 – e Américo quer atrair mais gente. Até porque, assegura, as pessoas podem encontrar ali um espaço de conforto nos momentos mais difíceis.
“Eu sei – e infelizmente tenho essa experiência – que quando um familiar parte é um momento muito duro e difícil, mas não podemos ficar em casa a olhar para as paredes, porque isso não resolve nada”, explica o vice-presidente da associação.
E nem os netos devem servir de desculpa: “Há uma coisa que costumo dizer: os pais devem ajudar os filhos naquilo que é possível, mas não os devem substituir e passarem a ser pais novamente [dos netos]. Têm de ter a sua vida normal. Há tempo para tudo.”
A simbólica quota mensal da ARMIL é de um euro, que Américo admite que já devia “ser dois ou três”, mas compreende que “a maior parte dos associados era dos quadros mais baixos e muita gente tem reformas baixas”, pelo que o valor acaba por se ir mantendo. O desafio passa mesmo por conseguir mais sócios para combater a natural lei da vida. “Ainda há pouco tempo conseguimos três novos sócios, mas, entretanto, morreram quatro…”, conta Preciosa.
“Enquanto puder, cá estarei”, completa Américo.
Para já, no horizonte está o passeio a Fátima, o almoço de aniversário da associação e a participação nas marchas populares. Depois disso, na primeira porta à direita, após passar a portaria da Santa Casa, no Largo Trindade Coelho, os planos para a realização de atividades continuarão e os encontros e convívios continuaram a acontecer.
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