“Mitra” é uma expressão no léxico alfacinha que na sua maioria significa um insulto, ou uma forma de caracterizar alguém pela sua maneira de vestir ou falar. Em muitos casos associado a um estrato social e cultural mais baixo, ainda hoje, falar de “mitra”, ou “vai prá mitra”, ou ainda, “ir para a mitra”, significa o fim da linha, uma consequência de maus vícios e más escolhas feitas ao longo da vida.
Atualmente, a “Mitra” de Marvila, junto ao Poço do Bispo, é composta por dois edifícios bem distintos. Um é o palácio barroco do 1.º Patriarca de Lisboa, valorizado enquanto salão nobre da Câmara Municipal de Lisboa. O outro é o antigo Asilo de Mendicidade, que graças a uma intervenção de restauro e preservação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a quem foi cedido o espaço, em 1994, tem transformado a “Mitra” num espaço único, onde a história se cruza com a inovação e as Boas Causas.
Inaugurado em 1933, como Asilo da Mitra, a história do espaço começou bem antes. Em 1566, a Quinta da Mitra foi aforada perpetuamente ao Morgado do Esporão. Porém, a ligação desse eixo à nata do poder não ficou esquecida. No início do século XVII, a Mitra voltou a recuperar o domínio útil de uma parcela da sua antiga quinta, uma faixa retangular entre a estrada de Marvila e a linha do rio onde se instalou uma quinta de recreio ou residência de campo.
No segundo quartel do século XVIII, a Mitra recuperou o palácio devoluto e em vez de o arrendar novamente a terceiros, o Cardeal Patriarca de Lisboa ocupou-o e decidiu convertê-lo num sumptuoso palácio com ligação ao rio através de um cais privativo. Quando o Cardeal Patriarca escolheu a Quinta da Mitra para a sua quinta de recreio, o eixo entre a Madre Deus e o Poço do Bispo já era local de habitação de muitos palácios e importantes conventos. A escolha do prelado apenas confirmou esta situação pré-existente.
Já em 1864, o palácio da Mitra terá sido vendido a D. José Saldanha, Marquês de Salamanca, fundador e concessionário dos Caminhos de Ferro Portugueses, pela quantia de 10 contos de réis. Dez anos depois, em 1874, o Marquês de Salamanca vendeu o mesmo palácio por 54 contos de réis, a Horatius Justus Perry, encarregado de negócios dos Estados Unidos da América, em Madrid, que vivia em Lisboa desde 1873, com a sua mulher, a poetisa Carolina Coronado. Perry morreu em 1891 e o palácio, após hipotecado, foi vendido em 1902 ao capitalista e deputado António Centeno, com a condição da viúva aí poder residir até à sua morte, que ocorreu em 1911.
Em 1930, e já depois de o espaço ter sido ser renovado para ser uma fábrica de fundição e metalúrgica, a Fábrica Seixas, o município de Lisboa adquire os terrenos da “Mitra”, por 4.000 contos, com o intuito de aí instalar um matadouro. Porém, optou por instalar, nos terrenos rústicos, a estação de limpeza oriental e nos barracões anexos, o Asilo da Mitra.
O asilo foi criado por iniciativa do coronel Lopes Mateus, inaugurado a 4 de maio de 1933. Na altura albergava perto de 1300 pessoas de ambos os sexos, e era apresentado como uma instituição modelar.
O Albergue de Mendicidade de Lisboa estava sob a tutela da Polícia de Segurança Pública para onde levava, compulsivamente, aqueles que eram apanhados a mendigar na via pública. A “Mitra” passou a ser o local para onde os afortunados de todas as idades eram compulsivamente recolhidos, identificados, tratados e encaminhados para a situação considerada mais adequada à sua condição, que poderia ser o internamento em instituições adequadas (doentes crónicos, doentes mentais, idosos isolados e crianças) ou o envio para tribunal, onde eram julgados.
Porém, pela falta de resposta das instituições estatais, muitos dos recolhidos que deveriam ser encaminhados para instituições não eram devidamente reencaminhados. Se os adultos iam sendo libertados mediante a fuga ou o pagamento da multa, as crianças, os mais velhos sem família ou abandonados, os doentes crónicos e os doentes psiquiátricos iam ficando acumulados no albergue, pelo que o espaço acabou por se tornar num depósito permanente onde se acumulavam os elementos destas populações fragilizadas, sem haver qualquer tipo de tratamento.
No início da década de 50 do século passado, o Albergue de Mitra vocacionou-se no acolhimento de doentes psiquiátricos. Entre 1952 e 1974, inicia-se então um período em que a “Mitra” se tornou um equipamento de retaguarda para doentes psiquiátricos prolongados, considerados incuráveis e sem perspetiva de tratamento, enviando-se para os hospitais (Júlio de Matos e Miguel Bombarda) apenas aqueles que pudessem ser tratados com novos fármacos que, entretanto, iam sendo criados.
A 31 de maio de 1977, o Albergue Distrital de Mendicidade de Lisboa, foi extinto e colocado sob tutela da Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais, tendo sido reconvertido, no ano seguinte, no Centro de Apoio Social de Lisboa, com duas valências, a de Centro de Terceira Idade e de serviço de acolhimento e triagem para encaminhamento para instituições especializadas.
Foi já depois da viragem do milénio, em 2014, que a Câmara Municipal de Lisboa transferiu para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa os terrenos e instalações do antigo Albergue da Mitra. Com o intuito de acabar com o estigma associado à mendicidade e à indigência, e devolver à cidade um espaço voltado paras as exigências do século XXI, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa iniciou vários de trabalhos de restauro e preservação do espaço, criando várias respostas sociais de referência.
O antigo Albergue da Mitra, que antes foi a Fábrica Seixas e hoje é o “Lisboa Social Mitra” da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é assim um dos locais mais importantes da cidade de Lisboa pela carga histórica que possui e pelo legado social e cultural que tem.